Carta aberta da direção da E.B.M. Luiz Cândido da Luz à comunidade educativa
Carta aberta da direção da E.B.M. Luiz Cândido da Luz à comunidade educativa
Prezada comunidade educativa da Escola da Luz, nesta carta contextualizo a atual e insustentável situação da Educação Fundamental, em especial no contexto da E.B.M. Luiz Cândido da Luz, evidenciando principalmente as condições de formação dos estudantes, do trabalho pedagógico e as implicações na saúde dos servidores, motivos estes que impossibilitam a continuidade de minha gestão à frente de nossa escola .
Nossa escola, hoje carinhosamente chamada “Escola da Luz”, já possuiu apelidos menos louváveis, como “Carandiru” dentre outros. Isso porque a escola já esteve entre as instituições de ensino mais violentas da Rede Municipal de Ensino Fundamental (RMEF). Há alguns anos, violências e atos infracionais dos mais variados tipos eram cotidianos contra professores e estudantes dentro do espaço escolar. Esta é uma condição nascida da naturalização da violência em regiões periféricas, normalmente abandonadas pelo Estado, como infelizmente é o caso do nosso bairro, a Vargem do Bom Jesus, um local sem políticas públicas adequadas ao lazer, à segurança e à saúde pública.
Para tornar-se a atual Escola da Luz, os educadores da unidade perceberam que não bastava esperar a atitude do estado e da Prefeitura frente à segurança pública. Por isso, começaram a se organizar para criar um espaço mais seguro e significativo para o ensino e a aprendizagem dos estudantes. Para delinear um projeto de escola que desse conta desse horizonte, foram necessários mais de 10 anos de árduo trabalho de gestão, de discussão e formação pedagógica. Em especial, nos últimos 6 anos, os educadores da unidade perceberam que não bastava a organização de procedimentos internos, o próprio currículo escolar deveria ter papel fundamental na formação dos estudantes, constituindo cidadãos críticos capazes de questionar sua difícil realidade e não reproduzir as frequentes ações violentas presentes nela. É desta construção coletiva que surge o Projeto Político Pedagógico (PPP) da Escola da Luz, com sua última versão aprovada em 2024 pela Secretaria Municipal de Educação (SME). Uma Escola Humanizadora que tem como um de seus pilares fundamentais o papel social do conteúdo escolar na formação cidadã.
Ao longo dos anos, mesmo com as várias dificuldades de fazer com que a SME garantisse as condições estruturais, materiais e humanas para o funcionamento adequado da escola e de seu projeto, lentamente percebemos a redução da violência e a ampliação do significado da escola para a comunidade. Quando tínhamos as condições físicas e humanas mínimas requisitadas e atendidas, o medo da violência foi substituído pelo prazer de aprender e conviver.
Em 2025, surge a chamada reforma pedagógica proposta pela nova gestão da SME, que inicialmente relatou querer dialogar com os profissionais para uma melhora da aprendizagem dos estudantes da RMEF. No entanto, na prática, impuseram uma série de ações autoritárias à toda comunidade escolar, ações contraditórias aos PPPs e ao cotidiano escolar das unidades, negando suas histórias, suas organizações e autonomias, sem qualquer fundamento pedagógico sobre o conceito de aprendizagem que tanto buscam.
Tal reforma vem sendo idealizada e executada às pressas e desorganizadamente pela SME, sem qualquer planejamento estratégico, ignorando os PPPs e as estruturas físicas, materiais e humanas que as escolas possuem. Algumas consequências disso têm sido a falta de professores e de salas apropriadas, os atrasos e ausências de manutenções e de materiais pedagógico e de limpeza e higiene, criando situações que colocam em risco não só a aprendizagem, mas os próprios estudantes.
Minha leitura é que, da forma como está sendo organizada a reforma, o objetivo da SME concentra-se em transformar o ensino fundamental, em especial o 5º e o 9º ano em um mero preparatório para a prova do Sistema de Avaliação da Educação Básica (SAEB). Essa organização descaracteriza a Educação Fundamental como espaço de liberdade e segurança para a formação cidadã e o trabalho, como aponta a Lei de Diretrizes de Bases da Educação (LDB). Cabe evidenciar que a nota do SAEB compõe os índices educacionais do município e estes se relacionam ao financiamento que a RMEF recebe do Estado. É importante ressaltar que tais índices são sim muito importantes para que as escolas avaliem parte do resultado de seu trabalho, mas existe uma diferença fundamental em perceber tais índices como consequência do trabalho de formação, e não como o objetivo principal da escola. Nessa lógica, a formação cidadã e integral do ser humano está sendo substituída por um intenso processo de adestramento e memorização dos conteúdos de Português e Matemática a fim de concentrar-se apenas na melhora das notas das unidades no SAEB e não necessariamente na formação integral como preconiza o PPP da unidade.
Este direcionamento pode ser percebido na ampliação desordenada e sem aviso prévio às escolas e comunidade do número de aulas de Português e Matemática em detrimento da carga horária das disciplinas de História, Geografia, Educação Física e Ciências no 9º ano. Tais mudanças desconsideram e inviabilizam o currículo da Escola da Luz em trabalhar a formação integral e o papel social do conhecimento característico da identidade da unidade. Por não ter planejamento diante dessa mudança feita às pressas, a SME teve dificuldade em contratar o número de profissionais necessários e, em nossa escola, os 8º anos ficaram sem professor de Português até início de abril, e sem o de Matemática até este momento.
Outra mudança às pressas foi o processo de integralização dos 5º anos que foi imposto às escolas da RMEF e à comunidade escolar, sem qualquer diálogo e aprovação de uma Diretriz Municipal de Educação Integral. Para que essa integralização se torne possível, são várias as perdas que a Escola da Luz tem sofrido: como por exemplo a sala do Apoio Pedagógico e a Sala de jogos deixaram de existir, o que obrigará professores e estudantes destes e demais projetos a ficar circulando pela escola buscando espaços livres em que possam desenvolver seu trabalho pedagógico, comprometendo assim sua eficiência. Outra grande mudança percebida foi a redução da designação de profissionais que, desde 2020, são fundamentais para a segurança e organização do espaço e funcionamento do PPP da unidade. Mesmo que nossa gestão tenha por diversas vezes requerido tais contratações junto a SME, neste início de ano já é nítido o retorno e a ampliação da violência, de conflitos e brigas constantes entre estudantes, além de diversos atos infracionais na unidade e que a muito não acontecia.
Infelizmente, a SME parece separar o pedagógico das condições estruturais, materiais e humanas fundamentais para desenvolvê-lo. A situação que se cria é insustentável, pois além de retirar a autonomia pedagógica da escola, as atuais condições humanas nos impossibilitam de lidar com o número e a gravidade das situações de violência que nos são apresentadas. Nossos profissionais que lutam por uma educação de qualidade estão adoecendo ao se verem impotentes diante do contexto altamente violento. É notável o número de ausências justificadas de professores na escola — o que pode impactar a aprendizagem dos estudantes.
Durante minha gestão, fiz tudo o que esteve ao meu alcance para reorganizar os procedimentos internos e tentar, em algum nível, reduzir a violência, seu impacto e melhorar as condições de trabalho dos profissionais. No entanto, a efetividade dessas ações decai quando toda semana surge um novo Ofício ou Portaria da SME que retira nossa autonomia diante da organização escolar, reorganizando toda a estrutura já estabelecida anteriormente, inviabilizando qualquer ação de gestão a curto, médio ou longo prazo. Esse desrespeito aos PPPs das escolas, a sua autonomia e à comunidade escolar somado a não disponibilização de condições mínimas de funcionamento estável, criam situações de insegurança, exaustão e adoecimento físico e mental a todos, inclusive a mim. Todos os dias me encontro exausto e impotente diante da falta de condições para a gestão da realidade escolar somada às insuperáveis demandas impostas pela SME. É desesperador compreender que o PPP da Escola da Luz, que construímos juntos em tantos anos de trabalho, esteja em risco diante da atual Reforma Pedagógica.
Reforço meu compromisso e respeito diante do PPP da unidade e do Projeto de Gestão eleito pela comunidade da Escola da Luz, que me mantiveram à frente da gestão pelos últimos dois anos e 4 meses, ainda que sem as condições plenas para o devido funcionamento da escola. Busquei realizar o que muitos chamam “redução de danos” diante de um governo que não valoriza a educação como deveria. Entretanto, a imposição da Reforma me coloca em um papel contraditório ao que fui eleito, que é defender o PPP e Projeto de Gestão aprovados pela comunidade escolar, ao mesmo tempo que sou obrigado a apenas executar as normas estabelecidas pela SME, divergentes da proposta pedagógica da unidade. O que parece ser uma “redução de danos” passa a ser, na verdade, a destruição do projeto nas mãos de quem foi eleito para defendê-lo. Essa contradição me faz reafirmar meu espaço de luta por uma educação de qualidade do lado certo da história, coerente a meus princípios e consciência diante da comunidade escolar a que tanto me dedico.
Agradeço a todos pelo carinho e confiança, saio da gestão da escola confiante de que não contribuirei para a desconstrução da escola que construímos juntos com tanto suor e sacrifício. Este não é o fim, mas um recomeço onde a vigilância, a ética e o rigor seguem firmes em minha prática educativa em sala de aula. Estamos todos juntos hoje e sempre.
Atenciosamente, Prof. Dr. André Luís Franco da Rocha
Florianópolis 25 de Abril de 2025
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