Se Milton Santos estivesse vivo para analisar a questão das tarifas de importação de Donald Trump, ele provavelmente abordaria o tema sob a ótica de sua teoria da globalização como perversidade e do uso do território.
Ele não veria as tarifas como uma medida isolada, mas como uma manifestação complexa das dinâmicas de poder no espaço geográfico global. Aqui estão alguns pontos que ele provavelmente levantaria:
A Reafirmação do Estado-Nação em Meio à Globalização Perversa:
Milton Santos argumentaria que, em um mundo globalizado onde os fluxos de capital, informações e mercadorias se movem com relativa liberdade, as tarifas representam uma tentativa de re-territorialização e de reafirmação do poder do Estado-nação (os Estados Unidos, neste caso). Trump, ao impor tarifas, estaria buscando reverter, ou pelo menos controlar, certos "fluxos" que, na sua visão e na de seus eleitores, estariam prejudicando o "fixo" nacional – ou seja, a indústria, os empregos e a soberania econômica dos EUA.
O Uso Seletivo do Território e a Geopolítica:
Para Santos, o território não é neutro; ele é "usado" por diferentes atores com interesses distintos. As tarifas seriam uma ferramenta geopolítica e econômica para redefinir as regras do jogo global em favor dos interesses americanos. Seria uma forma de pressão para forçar parceiros comerciais a renegociar acordos, visando uma vantagem competitiva ou a proteção de setores específicos da economia doméstica. Isso se encaixaria na ideia de uma "guerra de lugares" em escala global, onde cada nação tenta otimizar seu "território usado" em detrimento de outros.
A Racionalidade e a Irracionalidade do Sistema:
Santos frequentemente criticava a "racionalidade instrumental" do capitalismo global, que busca o lucro e a eficiência a qualquer custo, gerando irracionalidades sociais e ambientais. As tarifas de Trump, embora apresentadas como uma medida "racional" para proteger empregos e indústrias americanas, poderiam ser vistas por Santos como geradoras de irracionalidades em escala global, como guerras comerciais, aumento de preços para consumidores, desorganização das cadeias de suprimentos e instabilidade econômica internacional. A "racionalidade" de uma nação pode ser a "irracionalidade" do sistema global.
O Discurso e a Realidade Subjacente:
Milton Santos sempre foi cético em relação aos discursos hegemônicos. Ele diferenciaria o discurso político de Trump (que prometia "tornar a América grande novamente" e proteger os trabalhadores) das razões materiais e dos interesses de grupos específicos que se beneficiariam das tarifas. Ele questionaria se as tarifas realmente resolveriam os problemas de desindustrialização e desemprego para a maioria da população, ou se seriam apenas uma reorganização dos fluxos de capital que beneficiaria setores específicos ou consolidaria o poder de certas corporações.
Um Sintoma, Não Uma Solução para a Perversidade:
Em última análise, Santos não veria as tarifas como uma forma de superar a "perversidade da globalização", mas sim como um sintoma dessa perversidade. Elas seriam uma resposta defensiva e agressiva de um ator hegemônico dentro de um sistema que ele próprio ajudou a construir, mas que agora percebe como ameaçador para seus próprios interesses. Não seriam uma busca por uma globalização mais justa ou solidária, mas uma tentativa de ajustar os termos da globalização existente em benefício próprio, gerando mais tensões e conflitos no espaço geográfico mundial.
Em resumo, Milton Santos interpretaria as tarifas de Trump como uma manobra complexa de poder e controle de fluxos em um mundo globalizado, impulsionada por interesses nacionalistas e geopolíticos, e que, embora apresentada como solução, poderia gerar mais instabilidade e exacerbar as contradições inerentes à globalização perversa.
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